cronicas

Leiam como se fosse um livro. São materias selecionadas publicadas ao longo da minha vida em alguns jornais e revistas. A minha unica intenção é, além de proporcionar diversão e entretenimento fazer com que voces conheçam um pouco mais do que penso a respeito de quase tudo o que nos cerca, e pra que depois ninguém ouse dizer que eu não tenha feito a minha parte. Sejam bem vindos!!!

3 de jun. de 2008

O festival

A vida não se resume em festivais, esbravejou o grande mago da MPB, Geraldo Vandré, certa vez. Certo ou errado, não cabe agora aqui. O fato é que o artista, chamado por muitos de independente, o que me enche o saco, não tem ainda hoje o espaço devido na dita mídia, prá não dizer quase nenhum, e qualquer chance que aparece ele agarra com unhas e dentes, por menor que seja, sem muito pestanejar. E muitas vezes acaba se prejudicando ainda mais, ou quando não termina encerrando a promissora carreira prematuramente. Mas em compensação, aquele que por ventura se acovarda e não enfrenta pelo menos um só festival na vida, terá deixado uma imensa lacuna imperdoável em seu curriculum vitae à perseguí-lo até o pós mortem. Assim sendo, não havia festival nestas redondezas que eu me negasse a participar. E o prêmio nunca importava muito, as vias de fato era competir e aparecer... Mas aquela vez teria de ser especial, primeiro devido à problemática toda causada pela malfadada inscrição, e por que agora era um homem casado e já pai, a responsabilidade tinha um peso bem diferente nas minhas costas e não era mais o momento para brincadeiras e experiências fúteis. E mesmo por que a música era muito boa e com chances reais de faturar o primeiro lugar... Como se diz no vernáculo popular, montei um time de primeiríssima para tal empreitada. Convidei o sempre infalível mestre Cuíca, esse não poderia ficar de fora jamais, que nunca vi perder o ritmo e com um adendo sempre muito importante: bastava que se passasse uma só vez a música e bateria não seria mais problema... O meu camarada irmãozinho de fé, Ivan Tauil, assumiria a baixaria, ops, ou melhor dizendo, ficaria por conta dos pontos e contrapontos de seu esmerado contrabaixo, além do que seria o motorista designado para a "barca", não só por que nunca foi de beber muito, a que se comprometesse no trabalho, mas tambem pelo seu fusca e o fusca, econômico como ele só, cabia bem dentro do meu apertado orçamento... Então concentrei esforços em harmonizar de maneira singela e eficiente o violão, a flauta e o cavaquinho, e não me canso de dizer que este é um trabalho dos mais gratificantes e que jamais cansa... Fizemos ótimos ensaios, eu, Jair Cardoso e o sabe tudo, e um pouco mais, de música, o nego mano véio Wilson Caetano, sob os olhares e ouvidos atentos do calado e excepcional maestro José Carlos de Miranda, sempre com meio copo de cachaça da boa do lado, sua única exigência contratual... E nessa parte cabe bem um aparte: o Jair Bakana, como gostava de ser chamado, em vez de Bicho, como todo mundo o conhecia, sabe como é né, coisas de artistas, era um virtuoso da flauta e não é por que ele já se foi pro outro lado de lá não, sem nenhuma demagogia eu sempre tive a convicção de que ele realmente nasceu para esse instrumento, muito embora teimasse em tocar outros, se bem que bem tambem, mas nunca de maneira tão divina quanto. Com uma retaguarda dessas, é mole mole. Nem aquele famigerado friozinho na barriga... Nada de ansiedade, nada de nervosismo... O dia D chegou manso quase que de surpresa... Foi só ligar do vizinho, pois telefone naquela época era coisa de quem podia e quem podia sempre emprestava com muito gosto e não fazia mesquinharia como agora (deve ser por que ainda não havia a Telemar e a Telemig era coisa nossa ) e reunir a turma toda e pronto. Alô Ivan, é hoje! Pode começar a baldeação. Me pega por último... Fica frio, o fusca coração de mãe carrega seis numa boa, é só ficar mais atento aos buracos... Tudo em cima gente, não tamo esquecendo nada? Vamo que vamo. São João da Boa Vista nos aguarda!!! Tomamos rumo com os devidos cuidados já preestabelecidos, só na "maciota", pois tempo havia de sobra. E foi aquela algazarra ao passarmos pelo posto da Polícia Rodoviária de Casa Branca. Quem viu e ouviu não entendeu absolutamente nada! Mas nós todos sabiamos o que estavamos fazendo, é claro, pois que contei e recontei inúmeras vezes o sacramentado episódio ocorrido por ocasião da minha primeira passagem por ali... Aquele lugar teria sempre um cantinho reservado a ele dentro do meu coração... Chegamos ao destino cantando "nois é nois o resto é bosstaaa...nois é nois..." Pensei com meus botões: é hoje!!! Astral lá em cima, moral elevado... Tudo muito ensaiado e de cor e salteado... E com tempo suficiente pra molhar a goela com um conhaquezinho pra relaxar as cordas vocais... Não tinha mesmo jeito, finalmente eu estava perto, muito perto de ganhar um festival na vida! Não fosse um pequeno incidente... Tamém tava bom demais pra ser verdade!!! A voz entoada do locutor anunciou, muito bem empostada: e agora com vocês, da cidade mineira de Guaxupé, Marcos Sadala e Banda, apresentando de sua própria autoria a canção Choro Maluco, e este festival tem o patrocinio e blábláblaa... Cadê o Jair??? Manoépussivel! Tava aqui agora há pouco... Ufa, lá vem ele... O locutor, pela segunda vez anunciou, já meio aborrecido... E entramos! Gentem, o ginásio coberto do melhor clube da cidade estava lotadaço! Fizemos um charmezinho, aquele "migué" de ver se os instrumentos estavam afinados, acertei o microfone e gentilmente boa noite gente, é uma honra estarmos aqui, êhehehe??? A Elke Maravilha, que fazia parte do corpo de jurados, assim inexplicavelmente, de súbito se apoderou de um microfone e berrou como ela só, quase nada escandalosa: mas que tezão de crioulo!!! Referindo-se, sim claro, evidentemente, ao sempre tímido Wilson Caetano. E nem bem terminou a frase, já havia invadido o palco e tascado um glorioso chupão no nosso comedido amigo. Ah, e foi o suficiente para que ele mudasse de cor, Michael Jackson teria uma síncope se visse... O homem branqueou! Depois deu de azular... A platéia teve um generalizado orgasmo cósmico. O verdadeiro estouro da manada... E quando achei que ele já tivesse se recomposto contei um, dois e tres e minha voz acompanhou meu violão e o Cuíca, pasmem!, atravessou e foi um tal de um ir para um lado e outro ir para outro, que nem deu pra saber quem errou mais que quem. O Jair não sabia se entrava na bagunça, havia pois perdido a deixa... O Ivan ia explodir, contendo ou tentando conter o riso... Pára, pára, pára tudo! Foi o que consegui exclamar indignado. Desculpe gente, vamos ter de começar de novo! Em off o locutor sádico mor profetizou "voces estão desclassificados". Nem morto! Daqui não saio, daqui ninguém me tira! Estamos nos preparando há tempos e viemos de muito longe e vamos nos apresentar quer queira o senhor ou não, como manda o figurino. Teremos de consultar o júri, insistia o pentêlho. Metade da platéia vaiava aos urros, a outra metade atacava de canta, canta, canta... Os jurados, em vista do ocorrido até que foram bem condescendentes. Se conseguíssemos, poderíamos nos apresentar, meio a essa zona organizada, mas avisaram de antemão que já havíamos perdido pontos preciosos que no final nos faria falta com toda certeza... Sem problemas. Tinha de confiar que podia reverter aquela embaraçosa situação... E depois de quase uma hora improdutiva em cima de um palco, enfim cantei. E por uma questão de honra e também de competência, todos se sairam muito bem. Lembro-me de ter tido boas notas entre um "apesar do incidente", ou "voces não foram nada profissionais", ou "outra vez quem sabe" ou ainda "voces tem muito futuro"(sic) etc. etc.etc. E a nós restou a absoluta certeza de que havíamos nos tornado as maiores estrelas daquele festival da canção naquela noite de outubro de 1979. Então levar um troféu prá que? Seria pura covardia, seria não???


publicada em dezembro de 2001

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