cronicas

Leiam como se fosse um livro. São materias selecionadas publicadas ao longo da minha vida em alguns jornais e revistas. A minha unica intenção é, além de proporcionar diversão e entretenimento fazer com que voces conheçam um pouco mais do que penso a respeito de quase tudo o que nos cerca, e pra que depois ninguém ouse dizer que eu não tenha feito a minha parte. Sejam bem vindos!!!

5 de jun. de 2008

O Choro Maluco

Há quem duvide ou pensa que é estória de pescador... Mas posso lhes assegurar de mãos juntas que é fato ocorrido, sacramentado e se preciso for, juramentado em cartório. No fim dos anos setenta - tempo bom não volta mais (cantado) - mais precisamente no nono ano da década, o país se viu às voltas com uma alarmante e grave epidemia de peste suina. As fronteiras do nosso Estado estavam sob vigília constante, ou pelo menos assim nos garantia o tal Jornal Nacional, e então comprar, trocar, emprestar e até mesmo dar de grátis o animal sujo em questão nem pensar!!! Transitar de um lado para o outro, se pego era cana preta... E uma multa astronômica! Só mesmo com o carimbo e aval de inspeção federal. E se hoje é difícil, por conta da famigerada burocracia, imagine então naquela época. Cada qual criador se virava como podia, só no histórico jeitinho, se assim concordasse a sua consciência. "Capaiz memo, porco gordo no chiqueiro é prejuízo na certa!", bradava o amigo João Stampone, profundo conhecedor do assunto. E cada dia além do dia do abate, era um mês de engorda desperdiçado, arrematava com ares de doutor... Aí não tinha mesmo jeito, o cambio negro galopava solto por debaixo do pano... Era início de setembro... Eu me concentrava no esforço de me convencer que tão logo logo seria papai pela primeira vez, e a primeira vez a gente nunca esquece... O que me trouxe de volta ao mundo dos míseros mortais foi um recado deixado às pressas, por quem nem sei bem quem, tamanha era a ansiedade reinante em casa e que o momento histórico exigia, com toda a certeza de nossa parte. Esse recado confuso, à primeira vista, e a posteori no mínimo curioso, me intimava a comparecer até no máximo ao dia seguinte em São João da Boa Vista, caso quisesse consagrar a minha participação no concorrido Festival da Canção daquela cidade, pois que por conta de um descuido maroto, e perfeitamente compreensível, alguém no afã da pressa, havia apertado a tecla REC em vez da PLAY, e suprimido uma parte por mim cantada na fita cassete entregue, expondo assim a minha ficha de inscrição como incompleta, o que não era permitido segundo o regulamento. Reza a regra que aquilo que se começa deve-se terminar... Cantei para o bebê "espere um pouco, um pouquinho mais", telepaticamente, é claro, para não acordar a mãe, passei a mão no violão e nuns trocados para o rango e, quem sabe até prumas cervejinhas, por que ninguém é de ferro e por que também naqueles dias não existia a Telemar a me roubar e sempre sobrava algum para uma pequena extravagância. De onibus nem pensar!!! Não haveria tempo suficiente para tantas voltas e baldeações confusas que era de praxe. Pé na estrada, dedão em punho, tão logo o dia clareava... A ida foi bem, obrigado! Superando as minhas expectativas um amigo me deixou num primeiro trevo rapidinho rapidinho, outro conhecido me deixou no trevo de Caconde... E um caminhão aqui, outro acolá e antes mesmo do almoço já havia chegado ao meu destino. Então de repente, não mais que de repente, as horas começam a dar mostras de má vontade para comigo. E o tempo voa! Lá pelas tantas da tarde aparece a tal comissão que me julgaria. Finalmente cantei e aprovado no ato, acho que passei a ser o primeiro artista de toda a história da música popular brasileira a se classificar para um festival de canção se apresentando para a pré seleção ao vivo e a cores. Mas o tempo não pára. A brisa suave da tardinha roça meu rosto já tenso e desencadeia um turbilhão de aflições, contidas a duras penas. E o desespero bateu como um tijolo no meu peito. E tanto me desorientou que a primeira carona que peguei me abandonou perdido num trevo lá prás bandas de Mogi Mirim. E o perto ficou mais longe ainda... Mas segundo um caminhoneiro amigo , conhecedor de olhos fechados dos caminhos e descaminhos dessa região, essa era a melhor opção, uma vez que o fluxo de veículos por alí era mais intenso. Não sei se realmente acreditei, mas sei que queria acreditar e nesses momentos de indecisão a voz da prudência aconselha a ouvir a voz da experiência... Cheguei ao Posto da Polícia Rodoviária, no trevo de Casa Branca, no exato instante do fim de expediente dos guardas e já com algumas estrelas ainda opacas no céu espiando ansiosas o desaparecer dos últimos raios de sol. No chegar, descer e bater de portas, um PM deu flagrante no meu violão. Ô, menino, gritou, chega mais!!! Toca alguma coisa aqui pra gente. Entre rápidas e distraídas apresentações e apertos de mãos, resumi minha embaçada aventura. Cantei algumas músicas... "Toca a do festival!" É um choro, exclamei entredentes, timidamente. Chama se Choro Maluco. E pela segunda vez naquele dia entoei a tão requisitada canção. Ah, pra que?! Choveu fardado de tudo quanto é lado, como num passe de mágica. Bis, mais um, outra vez, bis... Um me apareceu com duas galinhas caipiras, uma em cada mão. É para a canja... Hoje vamos chegar em casa mais tarde! E toca mais uma vez! Outro murmurou alguma coisa sobre alguma cachacinha da boa perdida por aí... Bem, com um cachê desses não se discute! Sabe-se lá deus quantas vezes cantei. Mas gente eu preciso ir... Já é tarde da noite, ninguém me dará carona. Se de dia já foi um sufoco... Esquenta não mineirinho, rasgou o sargento, nós daremos um jeito. E enquanto falava, às nossas costas, o último ônibus vindo de São Paulo, meu derradeiro apêgo, mergulhava no breu da escuridão da noite e desaparecia das nossas vistas definitivamente... Dava para apalpar o meu infinito desassossego. Eu preciso mesmo ir, a minha esposa tá pra ter nenê, se é que já não teve... Falo sério! Desta vez aceitaram meu argumento. E foi uma correria só. Latões com óleo queimado pra encendiar e iluminar a estrada, cavaletes, triangulos de sinalização. Uma parafernália de causar espanto ao mais incrédulo viajante. Uma verdadeira operação de guerra! Já era dia seguinte quando abordaram um Fusca véio que teimou e teimou relutantemente entre parar ou não parar. E acabou parando muitos metros à nossa frente, como que se escondendo de toda aquela claridade. Corri em sua direção e deu para ver nitidamente no clarear da lanterna do guarda amigo, um motorista pálido feito cera, com as mãos coladas grudadas no volante... E uma senhora de idade avançada do seu lado. E o que conversaram já não me importava muito e quando me dei conta, estava sentado no banco traseiro do carro já quase em pleno movimento, enquanto me despedia com um aceno de mão dos policiais amigos... Porcos leitões, porcos porquinhos aos montes, uma porcada... Difícil de se imaginar tantos porcos assim em tão pouco espaço. Apareciam do nada, por debaixo do banco, por detrás do encosto... Um recorde com certeza! Ainda não se tem noticia alguma de empreitada semelhante. E eles pareciam muito à vontade, acostumados até e muito bem treinados para que quando o carro parasse, eles se escondessem... O fusquinha chiqueiro ambulante me desovou às pressas, como se quisesse se ver livre de mim o mais rápido possível, um intruso inesperado no ninho, logo alí no primeiro trevo de São José do Rio Pardo. Entre aliviado, frustrado e cansado, preferí chorar... Era pra mais de duas da madruga. Continuar a pé, apesar de, nem pensar. Mesmo porque minhas pernas se recusavam a sair do lugar. O meu anjo salvador veio montado num Alfa Romeu zerinho zerinho, acho que até desvirginado naquela noite... Berrei com todas as forças que eu quase já não tinha. Me leve daqui, por caridade! Meu espírito correu atrás do carro e ele parou... Tapiratiba? Tudo bem... Da pra me levar? E assim que me estatelei no plástico ainda intacto do estofado, um menino de seus 10 ou 11 anos mais ou menos tascou: puxa paiê, que cheiro horrível!!! E lá vamos nós explicar... E tive de cantar mais uma vez. Cantei como ninguém jamais cantou assim. E como prêmio, nosso bom samaritano - hê homem bão sô!!! - acabou me deixando na porta da minha casa, contrariando o seu itinerário estabelecido. Eu não soube como agradecer. Acho que lhe beijei as mãos... E se voces pensam que eu desmaiei de cansaço, como deveria de ser, sinto desapontá-los. Mal tive tempo de me livrar das roupas fedorentas e tomar um bom banho reconfortante, e me ví às pressas correndo para a maternidade... E se depois eu ganhei o festival??? Bem, essa é uma outra longa estória... Quem sabe um dia eu conte!


publicada em novembro de 2001

Nenhum comentário: